quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Deus proverá.



Acordei com uma angústia peculiar em meu peito. Eu já tinha sentido ela antes em outros episódios dignos de desejar perder a memória. Esse era mais um desses capitulos. Meu pai acordou de sobressalto, e eu só desejava que o tempo corresse rápido, mas ele insistia em se arrastar, como uma carroça em plena avenida principal da cidade. Tudo meio que girava em câmera lenta, e eu entendia o que se passava e fingia que não entendia nada, para ter a chance de escolher não participar. Eu estava me abstendo daquilo, até ouvir aquele som. Alguém caiu, pensei. Sei que demorou, mas na minha cabeça a sirene já fazia o maior barulho. As pessoas cochichavam ao passar pela porta, e eu não lembro onde estava a outra de 15. Não lembro. Já tentei, e ela sumiu dessa cena. Estavam sempre mencionando um andar: foi do terceiro ou quarto.
        Não sei onde todas as memórias foram parar. Acho que já desejei demais que tivesse amnésia como nos filmes. Posso até bater a cabeca para que isso aconteça.
        Os meses se arrastaram entre as idas ao hospital e a recuperação em casa. Nos mudamos. Nos afastamos da tragédia, dos vizinhos que cochichavam, do menino de apelido tenebroso, nos afastamos das pessoas, mas começamos a ter um relacionamento melhor com Deus e a nossa fé.
        Tivemos a ajuda de muita gente, que eu não sei bem quem, por que simplesmente não perguntava. E praticamente ninguém estava interessado em me contar. Estávamos na praia, numa espécie de veraneio forcado. Eu caminhava sempre sozinha. Noutro dia cheguei a varanda da casa e vi meu pai chorando. Era um choro contido, doeu até em mim. Uma raiva foi germinando ali, bem perto do lugar das dúvidas e de certos desprezos. Entrei e foi a vez de vê-la. Ela lia um livro deitava de barriga pra cima, imóvel por recomendações médicas. Cuidávamos dela como se fosse um bebê, torcendo para que ela voltasse a ter toda aquela vitalidade, exceto a vitalidade emprestada que a deixavam com vontade de voar. Olhei para ela e uma mistura de decepção e medo tomou conta de mim. Eu não queria estar ali naquela praia sem graça e muito menos ver meu pai esconder aquelas gotinhas salgadas que caiam longe dos meus beijos. Corri para minha mãe, que estava com o maior sorrisão. Disse que tinha fome, e que queria a melhor das sobremesas. Ela falou que não tinha, e disse uma das que é a sua melhor frase: “Deus proverá”.

Você acha que não



Sim, você já pensou nisso.
Depois dos limites.
Foi e voltou.
Fez.
Já refletiu, já voltou atrás.
Gritou, se arrependeu.
Fez de novo e mais uma vez.
Sua vontade te traiu e você traiu a sua vontade.
Já foi honesto, e já se enganou.
Chutou o balde e sentiu o pontapé.
Não quis só seguir instruções.
Mas não soube dá-las.
Revezamento de medo e coragem.
De libra e leão.
Olhou ao redor e perdeu a paciência.
E dentro perdeu o sono.

Você acha que não,
Mas sim,você é capaz.

29 de novembro, há 10 anos, decidi ser produtora.


O repórter estava suado, mas estava totalmente seguro do que fazia e que a câmera era sua melhor amiga.O microfone também fazia parte daquela turminha tão unida. Eu estava ali, na duvida se era aquilo mesmo que eu queria. O cadáver era de uma mulher. Magra, com as marcas do rosto afundadas na carne. Nem sei como olhei. Mas olhei. Respirei fundo. Tenente Nunes dizia ao repórter que eu tanto admirava que aquela foi dominada pelo crack. E que o crime era acerto de contas. Hoje sei que a polícia adora falar em acertos de contas, e que perícia não tem nada de CSI, ou qualquer série americana que tanto gosto.
Não conseguia parar de pensar no meu pai. Olhando jornais, assistindo programas policiais sangrentos a procura de notícias de Samara. Eu fazia parte de um desses telejornais, mas não queria ser estagiária desse aspecto da vida. Queria ser de tantos outros...
O repórter falava baixinho, como Joao Gilberto
cantando. E ameaçava jogar o microfone na minha cabeça se eu não prestasse atenção. Mas naquele dia, tudo o que eu menos conseguia era prestar atenção. Minha mente viajava e voltava, do meu pai a mim. Pensava naquele homem magro, mas forte. Daquele tão íntegro, tão lutador e o melhor e pior de tudo: tão esperançoso.
Meu olho já não conseguia mais guardar aquele aguacéu. Tenente Nunes disse que eu não servia para o serviço. Deu vontade de dizer que cada um sabe a dor e a alegria que traz no coração, mas ia parecer piegas e eu deixei essa linda frase para escrever agora.



Não conheço alguém que aos 18 veja cadáveres e pense na irmã, que poderia estar lá. Não é uma cena bonita de se ver, nem é uma coisa boa de sentir. Chorei, e se eu usasse um chop para me distrair, esse seria um bom momento.
Bem, naquela hora decidi que se é para passar informação para o telespectador, que seja numa sala com ar condicionado, junto de um computador, um telefone e um cafezinho. Muita euforia e gritaria, mas nenhum cadáver a sua frente.
Minha irmã, que determinou tantos aspectos da minha vida hoje estaria fazendo 30 anos. E foi através dos jornalistas que eu descobri que ela só chegara aos 28.
Hoje, sinto-me triste de ainda dar essas notícias. Sinto-me triste em ser a portadora do que essa pedra no meio do caminho tem causado. Sinto-me triste em hoje não poder dar os parabéns a minha irmã. Ele não teve mais um ano de vida.

Caixa


Guardei meu sofrimento numa caixinha.
Não numa caixinha qualquer.
Guardei no pacotinho que escrevi dor.
Ficaram lá aqueles dias em que jogávamos Super Mario e eu sempre tinha direito a duas vidas.
E com carinho armazenei as sextas que íamos com painho a locadora escolher desenhos...
Cada minuto das briguinhas de criança também foram deixadas lá.
E o dia que comemos um queijo do reino inteiro?Separei.
Brincar de boneca com a caixa de papelão, cozinhar flores e ler livros de banca de revista. Tudo isso tá lá, debaixo da tampinha.
Outras coisas que não merecem ser ditas também ficaram ao fundo, infelizmente.
Preciso de outra caixa para selá-las, mas ainda não consegui espaço para as pedras, Elas pesam e machucam.

Fazem dois anos hoje que eu fechei essa caixa.
Mas nesses dois dias de alguma forma ela se abre.
Eu tento fechá-la, mas cada lágrima derramada tem a força de uma maré.
Então eu desisto e me deixo levar.
Para 2013 prometo mudar o nome dessa caixinha.
Vou conseguir chamá-la de saudade.


A história de nós dois



A história de nós dois
Num sábado como qualquer outro eles se olharam. A respiração dos dois não estava combinada, nem os movimentos tinham sincronia, mas eram perfeitos por que não deixavam de ser pura inspiração.
Ela era uma contadora de histórias, dura, mas tão ingênua ao mesmo tempo. Ele tinha o dom da felicidade, do sucesso, de saber fazê-la ser a melhor, ate na hora de encher uma garrafa d’água.
Ela quase nunca sabia lidar com as coisas de um amor. Não entendia se estava agindo certo, errado, com coração ou com razão. Em momentos inoportunos suas emoções eram despejadas com lágrimas que só o travesseiro conhecia. Nas noites de insônia ela jogava suas letras todas agrupadas em coisas que só faziam sentido para a sua alma feliz, mas medrosa. Ele tinha certo brilho nos olhos, uma convicção avassaladora e uma autoridade até sobre aquilo que ele não entendia.
Os dois tinham implicâncias bobas, como se procurassem algo para fazer que não apenas serem extremamente felizes e apaixonados. Ela odiava a barba por fazer, ele admirava a profissão dela e ao mesmo tempo fazia criticas das mais variadas. No fundo, no fundo era puro divertimento.
Dono de técnicas incríveis de como servir, amar e ainda ser dependente faziam dele o charme em pessoa. Ela, cheia de inquietações, se perguntava constantemente em como estar a altura de merecer tudo aquilo? Mal sabia ela, que ele a achava numa altura compatível, e que aquele charme não passava simplesmente de ser quem se é, da maneira mais natural possível.
Numa manha, ele a abraçou. Foi daqueles abraços que dava costumeiramente nas primeiras horas da manha. Aquilo fazia parte dele, e era mais uma de suas irresistíveis maneiras de realizar sonhos. Mas ele nem sabia. Ele não percebia como o coração se enchia de alegria, e os olhos marejavam.
“Ela percebia todos os dias e a cada dia o quanto tinha que agradecer.