Acordei com uma angústia
peculiar em meu peito. Eu já tinha sentido ela antes em outros episódios dignos
de desejar perder a memória. Esse era mais um desses capitulos. Meu pai acordou
de sobressalto, e eu só desejava que o tempo corresse rápido, mas ele insistia
em se arrastar, como uma carroça em plena avenida principal da cidade. Tudo
meio que girava em câmera lenta, e eu entendia o que se passava e fingia que
não entendia nada, para ter a chance de escolher não participar. Eu estava me
abstendo daquilo, até ouvir aquele som. Alguém caiu, pensei. Sei que demorou,
mas na minha cabeça a sirene já fazia o maior barulho. As pessoas cochichavam
ao passar pela porta, e eu não lembro onde estava a outra de 15. Não lembro. Já
tentei, e ela sumiu dessa cena. Estavam sempre mencionando um andar: foi do
terceiro ou quarto.
Não sei onde todas as memórias foram parar. Acho que já
desejei demais que tivesse amnésia como nos filmes. Posso até bater a cabeca
para que isso aconteça.
Os meses se arrastaram entre as idas ao hospital e a
recuperação em casa. Nos
mudamos. Nos afastamos da tragédia, dos vizinhos que cochichavam, do menino de
apelido tenebroso, nos afastamos das pessoas, mas começamos a ter um
relacionamento melhor com Deus e a nossa fé.
Tivemos a ajuda de muita gente, que eu não sei bem quem, por
que simplesmente não perguntava. E praticamente ninguém estava interessado em
me contar. Estávamos na praia, numa espécie de veraneio forcado. Eu caminhava sempre
sozinha. Noutro dia cheguei a varanda da casa e vi meu pai chorando. Era um
choro contido, doeu até em
mim. Uma raiva foi germinando ali, bem perto do lugar das
dúvidas e de certos desprezos. Entrei e foi a vez de vê-la. Ela lia um livro
deitava de barriga pra cima, imóvel por recomendações médicas. Cuidávamos dela
como se fosse um bebê, torcendo para que ela voltasse a ter toda aquela
vitalidade, exceto a vitalidade emprestada que a deixavam com vontade de voar.
Olhei para ela e uma mistura de decepção e medo tomou conta de mim. Eu não
queria estar ali naquela praia sem graça e muito menos ver meu pai esconder
aquelas gotinhas salgadas que caiam longe dos meus beijos. Corri para minha mãe,
que estava com o maior sorrisão. Disse que tinha fome, e que queria a melhor
das sobremesas. Ela falou que não tinha, e disse uma das que é a sua melhor
frase: “Deus proverá”.